quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Virar





O relato tinha que ser nascer no último dia mesmo. E, de preferência, nas últimas horas para não deixar escapar nada deste ano tão intenso. Bem que tentei colocá-lo no papel ontem à noite. O ambiente era propicio. Abri o janelão, liguei o som e acendi minha cigarrilha. Ainda fui agraciado com o perfume da dama da noite que invadiu minha sala exalando sua fragrância doce por horas a fio. Não consegui. A mão travou sobre o sulfite branco.


Mas agora cá estou eu nesta manhã de 31 de dezembro para falar de um 2009 transformador. Lembrar que o ano marcou a morte de Michael Jackson, que tivemos apagão, e que o Corinthians foi campeão com Ronaldo (oba), deixo para o plim plim falar mais tarde. A retrospectiva é de minha vida. Sou tomado por uma forte emoção. Entrego-me a ela.


A caneta agora desliza suavemente pelo papel dando formas as palavras que vem do coração. O vermelho de sua tintura escreve no alto da página: “separação”. Depois de quase seis anos casado agora me vejo só. Aos olhos daqueles que enxergam a vitória do amor pela quantidade de bodas, talvez tenha fracassado. Mas desse pensamento já me livrei há um bom tempo. O sucesso ou fracasso de uma vida a dois não se mede pelo tic-tac do relógio. Prefiro a batida do coração. Tive taquicardia. E muitas!


Lembro-me de nosso sorriso que não se permitiu diminuir durante horas, no nosso “Sim” diante de amigos e parentes na capela da PUC lotada, naquela estrelada noite do dia 27 maio de 2004. Que dia mágico. Meu corpo não tinha peso. A insustentável leveza do ser.


A vida nos enxergou grande demais e não quis poupar a juventude de nossas almas. Vivemos todas as faces do amor com sagacidade. O órgão que pulsa em meu peito traz em suas artérias cada segundo de nossa história. Ela existe. Muitas vezes achei que a perderia para algo que não conhecia. Alias, poucos conhecem. Te ver por tanto tempo naquele hospital não foi fácil. Dilacerou-me. Mas nosso amor se transmutou em Golias e derrotou o pior dos cânceres. A jornada foi longa. Poucos acreditavam. Mas vencemos. Emociono-me de lembrar.


Quatro anos depois, a vida nos chama de novo. É hora de seguirmos por estradas diferentes. O bom é que não precisamos pagar pedágio. Nós mesmos é que as construímos. São longas e floridas nas margens. E o caminho é infinito.


O ano de 2009 está terminando. Deparo-me com uma nova paixão: eu mesmo. Só que mais novo. Um bebê. Tenho poucas semanas de vida. E dela, pouco sei. Mas alguém sabe? Não temos poder sobre nada. Absolutamente nada.


Delicio-me agora olhando pela minha janela. No galho da primavera, a poucos metros de onde estou, vejo o ninho de passarinhos. Para lá me transporto. Fico encantado com o zelo daquele pequeno ser por seu filhotinho recém-chegado. Não o tira de suas entranhas por nada. O acaricia a todo momento. Vou tentar fazer o mesmo comigo em 2010.


sábado, 26 de dezembro de 2009

Comporta da lagrima




Tenho convivido diariamente com meu sentimento. Ele está até mais atrevido. Ultimamente perdeu a vergonha. Pede passagem a qualquer hora dia, seja lá onde estiver. Hoje mesmo, nem esperou eu acabar de ler a segunda página de um livro na minha hora de almoço, após um exaustivo plantão de Natal, para encher meus olhos de lágrimas. Lá fui eu tentar domá-lo. Voltei-me para um canto qualquer disfarçando os olhos marejados, em uma Fnac lotada.


O episódio tem sido freqüente. Só mudam os cenários. Pode ser no carro, ouvindo uma música no caminho ao trabalho. Na frente da TV, assistindo a um filme. Ou mesmo escrevendo, como agora. Mas o ápice vem no dia em me escuto, quando afrouxo a gravata e me esparramo no divã. Até imagino a Daniela olhando sua agenda de atendimentos e vendo meu nome lá final do dia. Deve pensar: “preciso abastecer meu estojo de lenços. O homem Itaipu vem aí. Qual será a vazão de hoje”. Se tomar por base as últimas sessões, não tenho dúvida que conseguiria livrar definitivamente o Brasil de um “apagão”, tamanho a quantidade de lágrimas vertida de meus olhos.


Lendo os parágrafos acima seria absolutamente natural qualquer pessoa pensar: quanta melancolia! Quem chora muito assim deve estar mergulhado numa forte depressão! Pois é, mas não é assim que me vejo. Vou tentar explicar. O choro é como se estivesse mergulhado fundo na minha emoção, percebendo que ela é quente e amável. É me permitir vivenciar. Não resistir. A tristeza pode ser uma emoção doce se nos permitirmos senti-la. Faz com que nos lembramos que estamos vivo. Só há sofrimento quando resistimos à tristeza e lutamos contra ela.


Fico imaginando, ao observar o meu processo, o quanto ganharíamos em humanidade, se todas as lágrimas provenientes do desamor, do desespero de uma perda, da ferida profunda que não cicatriza, fossem transmutadas em lágrimas da descoberta. A existência seria mais verdadeira. O mundo mais leve.


É hora de chorar com o coração


domingo, 20 de dezembro de 2009

O Espelho





"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, a outra que olha de fora para dentro......... O Alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardo que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou-se de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado."


Tirei o trecho acima do conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Li hoje, logo após acordar. Naquele momento do dia em que a mente ainda não faz muitas perguntas, principalmente num domingo de folga. O espelho do conto é o objeto usado para mostrar os dois lados de nós mesmos. Pelo reflexo da peça a imagem refletida olha para o eu se tornando o outro que olha para o eu. A leitura do texto me fez refletir sobre a saga humana, a duplicidade de nossas almas. Viver essa ambigüidade talvez seja uma grande oportunidade de se encontrar. Ou pelo menos dar o primeiro passo. Precisamos achar nossos espelhos.


Vivemos muitas vezes a vida no piloto automático. As coisas vão acontecendo e não nos damos conta do seu real significado. Por trás de alguns episódios existem muitas mensagens subliminares. É preciso ficar atento. Observar. Sentir. Se permitir. Se isso não ocorrer abriremos um canyon em nós mesmos. Nos distanciamos de quem verdadeiramente somos. Passamos a viver os acontecimentos externos, o dia-a-dia na visão de uma grande maioria míope, que ainda não passou pelo “oculista”.


Mas isso cabe a nós. Somente a nós. Não podemos viver as expectativas dos outros. No começo pode até ser interessante e mais confortável. Ter a admiração alheia nos enche de respeito, nos inclui, nos coloca num pedestal. Mas é falso. O tempo mostra. É implacável. É preciso olhar para o espelho. Conversar com seu Eu. Caso contrario a dor vem forte. Comprime. Adoece. Amargura. Mata.


Mas....... cada um tem seu tempo. Cada espelho tem seu tamanho. Seu brilho. Seu reflexo. E, cada Ser, os seus olhos. Azuis, verdes, castanhos ou mel.................


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Escrevendo.....




Estou descobrindo o prazer de escrever. A afirmação pode parecer estranha, ainda mais vinda de um jornalista, cujo ofício é escrever. Mas não me refiro à escrita do factual, da notícia apurada diariamente, até porque, de uns anos para cá, não é mais o jornalista que escreve a notícia, é a notícia que escreve o jornalista. Sei muito bem do que estou falando. A minha nova descoberta é a escrita com a alma. A escrita terapêutica. Sem compromisso. Se jogar num puff com caderno e uma caneta e praticamente psicografar. É incrível como as palavras brotam. Limpam. Saem.


Na semana passada assisti um filme muito interessante que aborda a escrita de uma forma libertária, revolucionária, sem limites. Chama-se “Nome Próprio”, do diretor Murilo Salles. Conta a história de uma jovem meio “doidinha” e blogueira, que tem o sonho de escrever um livro. Entre um relacionamento e outro ela exala suas vísceras sentimentais na tela do computador. Escreve sua história. Seus conflitos. Seus dramas. E afirma: “escrevo porque preciso”.


Como também estou em busca do meu “Nome Próprio”, neste momento de tantas descobertas em minha vida, o filme veio bem a calhar. Nas últimas semanas não tenho feito outra coisa que não escrever. Eu também preciso! Sinto-me mais vivo. Ponho pra fora minhas angústias. Choro com as palavras. Parece que o mundo ganha outra forma. Outro colorido.


Escrever é mágico! Pena que descobri essa forma de se expressar somente agora. Mas ainda há muito tempo. Muito tempo!!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A CASONA






Do seu janelão descortinei o mundo.

Aos seus pés dormi e acordei com o sol.

Ah,... Que suave quentura as baforadas em minhas cigarrilhas contemplando as tardes.

E a Primavera de seu quintal.

Embaixo de seus encrespados galhos vermelhos almocei em muitos domingos.

Como esquecer da pitoresca cozinha!!!

Quantos pratos saborosos preparei!!. Também namorei.

E a sala!

Tantos amigos. Conversas infindáveis. Futebol. Corinthians.

Gargalhadas.

Na banheira me deitei. E muitas vezes me encontrei. Chorei!!

No quarto do amor, nos dois éramos um.

Em teu conforto vi de perto a morte atentar. Mas optamos pela vida.

Vida que segue.

Vida que renasce

Vida que habita.


sábado, 5 de dezembro de 2009

O vento





O trajeto era curto.

Não mais que dois quarteirões.

Ele colocou o fone de ouvido.

Deu os primeiros passos.

O rádio tocava Midnight Oil.

O vento trazia o prenúncio de chuva.

A corrente de ar transpassava seu rosto.

Os cabelos esvoaçavam.

A sensação era de liberdade.

A cada metro um peso lhe caia dos ombros.

A densa fumaça começava a se dissipar.

Era mágico.

Os olhos se encheram de lágrimas.

A vida lhe veio à mente.

Parecia um trem expresso.

Em alta velocidade os anos foram revistos em segundos.

Tudo passou.

E ali ficou.

O percurso chegara ao fim.

Era hora de atravessar a avenida

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O Aikido e o Corpo




Cheguei até o aikido através de uma amiga, que via na sua prática uma forma de eu conseguir desenvolver a meditação ativa, algo que poderia me ser útil nessa fase de tantas transformações em minha vida. As artes marciais de uma forma geral ajudam na disciplina, no autocontrole e no equilíbrio, mas o aikido vai um pouco além, introduzindo na sua essência, uma interessante pitada filosófica. Seu fundador, Morihei Ueshiba (1883-1969) sempre dizia a seus discípulos: “Sem filosofia, não há Aikido”. Mestre Ueshiba foi um supremo artista marcial, mas sua busca durante a vida foi mais espiritual do que marcial. Quem me conhece, sabe desse meu lado mais holístico, até muitas vezes exageradamente místico, então não seria muito difícil gostar de uma atividade que busca integrar corpo e espírito além de uma interação com os outros seres humanos de uma maneira mais harmoniosa.

Parti então para a busca de um dojô – local onde se treinam artes marciais. Bastou um google na tela de meu computador para surgir ali pelo menos uma dezena de endereços esparramados por São Paulo. Pela localização, selecionei dois nomes e liguei. No primeiro contato a coisa não fluiu. Logo em seguida disquei para o segundo número. Do outro lado da linha uma voz feminina cativante me apresentou o espaço e me convidou para uma aula experimental. Dois dias depois subi as escadas que me levaram para o Aikido Nova Era, na Rua Augusta. A mesma voz que me atendera ao telefone naquela quarta-feira, estava na recepção. Apresentou-se como Lila e pediu para que eu me trocasse. Vesti rapidamente um moletom e uma camiseta e fui para o tatame, quando, para minha surpresa, bem ao centro, estava a agora, Sensei Lila. Devidamente trajada com um kimono branco, envolto com o hakama – uma espécie de calça preta semelhante a uma saia, usada pelos aikidoistas mais graduados – ela conversava com alguns alunos antes do início da aula.

O treino começou pontualmente no horário previsto. Depois de um forte aquecimento, comecei a conhecer, na prática, os golpes e as defesas dessa arte marcial tão especial. Com uma fala pausada e um sorriso permanente em seu rosto, Lila Sensei, escorada em anos de experiência num dojô – acredito que mais de duas décadas -, nos mostrava toda a circularidade e plasticidade dos movimentos. Como um pião, seu corpo descrevia um movimento sempre harmonioso, em forma de zig-zag, mas nem por isso os golpes deixavam de ser cheios de vigor e energia, aplicados sempre ao princípio de não-resistência e da abstenção da força bruta. Assim, me foi apresentado o aikidô.

Voltei na semana seguinte, agora já com meu kimono e mais ambientado. Tentei aplicar alguns golpes. Cai. Levantei. Rolei. Suei. Sentei. Ouvi. Praticamente não percebi aquela uma hora e meia de treinamento. Exausto e ainda me sentindo um pouco estranho com o kimono – nunca havia vestido nada igual na vida – fui tomar um copo d’água – um não, vários!!!!!!!. Ao lado do bebedouro, agora sentada numa cadeira, Sensei Lila, acabara de falar ao telefone, quando comecei a puxar assunto, fazendo um relato da minha impressão nas primeiras aulas. Com uma gentileza impar – comuns as pessoas que sabem dar ao tempo o seu devido valor – ela me disse que eu tinha até um rolamento bonito (oba) – e que também caia direitinho (olha que achei que eu fosse o cara mais desengonçado do mundo). Depois de uma pausa, fez mais uma observação sobre meu desempenho: “Mas eu notei também uma coisa: toda vez de ir para o kamai – a forma de se posicionar para a luta – você nunca sabe pra que lado seguir, fica perdido, em dúvida, não se acha”. Bingo!!!! Ela vira na minha forma de apresentar o corpo, com uma observação sutil e em poucos segundos, o retrato da minha vida. Não é que meu corpo estava me mostrando o que o meu self já percebia! Incrível, não? Sai do treino aquele dia caminhando pela rua refletindo sobre o ocorrido. Mais um sinal nesta minha caminhada me foi mostrado e de uma forma genuína, pura.

E assim, caindo e levantando, já estou há três meses no aikido. Confesso que até agora consegui memorizar pouquíssimos nomes de golpes e movimentos – Irimi kaiten, tenkan, yokomen uchi, Irimi nage e assim vai -, mas... não importa!!. O que vale mesmo agora é estar ali, compartilhando, aprendendo ou simplesmente observando. Valeu aikido!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Eu, o Lula e os Catadores de Papel




Era para ser mais uma cobertura presidencial. Depois de mais de 10 anos entre as editorias de política e economia, confesso que ultimamente poucas reportagens têm me motivado. Além de ligeiramente cansado com o “hard news”, a ciclotimia política já não me convence. Cheguei ao pavilhão do Mart Center na última quinta-feira, onde aconteceu a abertura do Expocatadores 2009 - encontro mundial do movimento dos catadores de materiais reciclados -, um pouco atrasado. Passei pelo detector de metal – obrigatório nos eventos presidenciais – e segui direto para o cercado da imprensa. O sol escaldante que fazia lá fora transpassava pelo telhado de zinco do enorme salão, transformando o ambiente numa verdadeira sauna finlandesa. O atraso em mais de uma hora da cerimônia me permitiu jogar conversa fora com os colegas sobre amenidades, futebol e música – alias se um dia resolvermos contabilizar o tempo em que nós jornalistas esperamos nas pautas para a execução das matérias, ficaremos assustados com tanto desperdício.

O locutor ocupou seu lugar no púlpito e chamou, uma a uma, todas as autoridades para início do evento. Aqueles discursos chatos de ministros, presidentes de estatais e de parlamentares, recheados de retórica que não combinavam com ambiente, cançaram a paciência do povão. Todos ali aguardavam ansiosamente para ver e ouvir, a figura daquele que tão bem sintetiza a cara desse Brasil brasileiro, mulato inzoneiro como cantou Ari Barroso em outros versos imortais: o Presidente Lula.

Antes de seguir com o relato quero deixar claro que tenho muita crítica à Lula e ao seu partido, mas não sou daqueles que nutrem um preconceito mesquinho e idiota como boa parte da elite burguesa, que até hoje não se conforma que um retirante nordestino e torneiro mecânico esteja habitando, há 7 anos, o Palácio do Planalto. Como jornalista, cobri as duas eleições que levaram lula à presidência da republica – 2002 e 2006 – e o que sempre me intrigou foi a sua capacidade extraordinária de absorver qualquer fonte de ensinamento que existe a sua volta – viajando pelo país, conversando com o povo, convivendo com intelectuais ou com empresários. Talvez esteja aí uma das explicações para sua alta popularidade.

Bom, depois de mais de duas horas de espera, para a alegria daquela gente, Lula começou a falar. Como sempre usou as metáforas do futebol para explicar a economia, as relações familiares para se referir à política, mas o ponto mais marcante - e o que motivou esse artigo – foi quando no final do discurso, Lula, após um gole d’água naquele verdadeiro Saara, se virou para nós jornalistas e disse: “Eu queria pedir a vocês que esquecessem a pauta dos editores pela primeira vez na vida. Deixem as questões políticas, as repercussões disso ou daquilo para uma outra ocasião. Sugiro que se ‘embrenhem’ nessa multidão atrás de vocês. Ouçam o que eles tem para falar. Não precisa interpretar. Apenas escutem e escrevam suas histórias de vida. Vocês vão ter a oportunidade de mergulhar na verdadeira alma do povo brasileiro”. Ele falou com um conhecimento de causa, como se buscasse na memória sua infância sofrida no sertão nordestino e naqueles 13 dias de viagem num pau-de-arara, até a chegar à cidade grande, em meados dos anos 50.

Enquanto ele falava desloquei minha atenção para a grade de ferro, há poucos metros de onde estavam os cinegrafistas e fotógrafos. Prensados num canto do salão, vi ao mesmo tempo uns dez rostos colados uns aos outros. O retrato era de um povo sofrido, marcado pelas injustiças e malesas sociais. Mas o dia para eles era de festa. Por alguns segundos fiquei apenas observando a admiração daquela gente pela figura do presidente. De certa forma todos se identificavam com Lula. Ele era o legítimo representante.

Depois de meia hora de discurso o evento chegara ao fim. Mas o melhor ainda estava por vir. Literalmente mergulhei nos braços daquele povo. Explico: Como o motorista da rádio havia me deixado numa rua paralela ao Mart Center, resolvi tentar sair pela lateral, achei que seria mais fácil. Mas parece que o destino queria mesmo que eu atendesse o pedido de Lula. Comecei a andar vagarosamente entre aquelas pessoas por alguns metros, quando bem no meio do salão, tudo ficou travado. Ninguém andava mais para trás e nem para frente. A segurança da presidência havia bloqueado as saídas para o deslocamento da comitiva. Quando me dei conta, estava cercado pelos catadores de papel. Uma foto naquele momento captaria um “engravatado” entre centenas de pessoas humildes. Não resisti ao momento. Pelo contrario, me entreguei. Comecei a ouvir histórias e conversar com aquela gente.

O seu José aparecido, que tinha vindo de Cuiabá no dia anterior, foi o primeiro. Com uma alegria entusiasmante me contara que desde o mês passado, percorria as ruas de sua cidade com um novo carrinho, desenvolvido por um grupo de estudantes da universidade local. A nova “máquina”, tinha até um compartimento, onde podia deixar sua marmita. Sem que perguntasse, uma senhora, de pele mulata, que trazia no rosto vincado as marcas do trabalho de sol a sol nas ruas de Salvador, disse que seu trabalho havia melhorado nos últimos meses, depois da chegada da cooperativa dos catadores de papel. “Olha moço, Deus sabe o que já passei nessa vida. Perdi meu marido há 10 anos por causa da bebida, mas graças a essas pernas e braços que consegui criar meus quatro filhos”, me contou com orgulho a dona Dalva, de mãos dadas com a filha mais velha, que graças ao financiamento da passagem pelos organizadores do evento, pode acompanhar a mãe desde a Bahia. Naqueles 20 minutos que fiquei por ali, ainda ouvi outras histórias bonitas e cativantes de um povo pobre e sofrido, mas que com todas as suas agruras ainda encontra tempo para sonhar e sorrir.

Confesso que deixei o local um pouco mais emotivo do que já sou diariamente. Também sai dali, sem nenhum trocadilho, mais rico. Rico de alma e acreditando cada vez mais na essência desse povo brasileiro.

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sábado, 31 de outubro de 2009

UM ADIVINHO ME DISSE




Eu o conheci despretensiosamente. Caminhava pelos corredores da livraria da Fnac, como faço quase que diariamente após o almoço, quando parei na seção de Viagem. Entre guias de estradas, livros de roteiros pela Europa e pelo Brasil, encontrei ali na estante um pequeno – não tão pequeno assim – tesouro literário. Sabe esses livros que te tocam, que fazem ver a vida por um outro aspecto e com uma riqueza de alma profunda, além de um texto brilhante? Pois é, foi isso que descobri em “Um adivinho me disse”, do jornalista italiano Tiziano Terzani, que conta o ano mais inusitado de sua vida.

Terzani viveu mais de 20 anos na Ásia como correspondente internacional escrevendo para diversos jornais e revistas da Europa. Viu de perto todo o processo de ocidentalização do Oriente e a mudança do modelo cultural de uma parte do mundo mergulhada num forte misticismo.

Levado a Hong Kong por uma amiga no final dos anos 70 acabou passando por uma consulta com um adivinho de grande reputação na região. Impressionado com o relato do guru sobre vários aspectos de sua vida, ouviu que não deveria voar no ano de 1993, pois iria morrer. Para um jornalista internacional não poder se descolar de um país para o outro de avião, era praticamente impossível exercer sua profissão.

Passado mais de uma década e meia, o fatídico ano de 93 chegara. Disposto a não dar “sopa para azar” Terzani resolve ouvir os conselhos daquele homem que o havia sentenciado no passado. Começa a nascer então “Um adivinho me disse”. O jornalista decide transformar aquele alerta numa experiência jornalística única: continua a cobrir as notícias como sempre fizera, mas agora se deliciando com a lentidão das viagens por terra e mar.

Durante um ano, a bordo de motocicletas, ônibus, trens e navios, Tiziano Terzani nos presenteia com relatos riquíssimos, onde ao mesmo tempo em que investiga a arte milenar dos adivinhos, descreve uma civilização que está se suicidando ao perseguir um modelo cultural que nunca lhe pertenceu.

Acrescentando uma pitada de poesia na própria vida, de olhar para o mundo com novos olhos, de descobrir que o sol nasce, que existe lua no céu e que o tempo não é só aquele medido pelos relógios, Terzani parte para uma viagem incrível durante doze meses.


Fique tão encantado com livro, que já o reli pela segunda vez. A cada página pude descobrir também a alma de um jornalista brilhante, que tão bem descreve a essência dessa profissão em um dos capítulos de seu livro “Um adivinho me disse”.

“Este é um aspecto do trabalho do jornalista que nunca deixa me fascinar e inquietar: que os fatos não relatados não existem. Quantos massacres, quantos terremotos acontecem no mundo, quantos navios afundam, quantos vulcões entram em erupção e quantas pessoas são perseguidas, torturada e assassinadas. Mas se não há alguém ali para ver, para descrever, para fazer uma foto que deixe traços em um livro, é como se esses fatos jamais tivessem acontecido, esse sofrimento todo não tem importância, não tem lugar na História. Porque a História existe apenas se alguém a conta. É uma triste constatação, mas é assim a vida; e talvez seja precisamente essa idéia - a idéia que com cada pequena descrição de algo observado o repórter pode deixar uma semente no terreno da memória - que me mantém amarrado à minha profissão”.



Tiziano Terzani morreu em 2004, aos 65 anos, vítima de um câncer. O livro "Um Adivinho me Disse" foi o único publicado em Português. No entanto, ao longo de mais de 40 anos de profissão, o jornalista escreveu outros 10 livros, editados em diversas línguas. Poucos meses antes de morrer, Terzani finaliza "Lá Fine È Mio Inizio" (O Fim É o Meu Começo), onde narra ao seu filho, suas histórias mais íntimas ao longo de sua vida. Sem dúvida nenhuma a história de um homem que viajou muito para descobrir que o verdadeiro mestre se encontra dentro de cada um de nós. No site www.tizianoterzani.com é possível conhecer um pouco mais de sua biografia.







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