segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Devaneios Literários





Os ponteiros do relógio do Pátio da Igreja de São Pedro se cruzaram novamente bem perto das 11 horas manhã. Trabalhavam mecanicamente alheios ao calor nordestino naquela segunda-feira de outubro. Entre o vazio de dezenas de bancos de madeira perfilados no ladrilhado piso da catedral pernambucana, uma senhora de cabelos longos e grisalhos sebosos amarrados na ponta por um elástico, buscava conforto na imensidão do silêncio. Olhava fixamente para a imagem do corpo de Jesus de Nazaré esticado na cruz suspensa no alto de uma das colunas da centenária igreja. Sua história podia ser contada pelos pés. Os dedos acaroçados e de unhas grossas arrastavam lentamente de um lado para o outro um par de havaianas surradas. Deixara no chão uma sacola de pano com algumas peças de roupas e uma boneca nua sem cabeça. Aquela senhora, com cara de avó, parecia sentir na alma as chagas de cristo. Alguns acentos a frente um homem de pele mulata, não muito velho, mais de idade indefinida, ajoelhava e unia as mãos em clemência. Num aplicado murmúrio, movendo continuamente seus beiçudos lábios, encaixava a cabeça entre os braços e dali a pouco a ergui e olhava para mesma imagem nos fundos da igreja. Não mais continha o fluxo de lágrimas. Estava seguro de que só a casa de Deus poderia entender seu sofrimento. O toc-toc seco de um tamanco ecoou no silêncio celestial. Uma morena espichada de finos traços tentando controlar o volume de seu espanhol entrou por uma das portas laterais trazendo pendurada no pescoço uma máquina digital. Transparecia no jeito inquieto em que se comunicava com a amiga, que viajava mais para colecionar imagens do que para vivenciá-las. Clicou a arte barroca como se congelasse a foto de muro rebocado.


Das escadarias saia uma praça rusticamente cimentada e de pouco verde. À sombra da única árvore mais volumosa que dava para calçada, um quarteto de senhores, sentados ao redor de uma improvisada mesa sustentada por caixotes de madeira, viviam aquela manhã pelas pedras do dominó. Mastigando um cigarro de palha de canto da boca, um senhor de um amarelado cabelo branco e pele assustadoramente vincada pelo sol, estava seguro que fizera a jogada certeira. Olhou por alguns segundos as peças dispostas em uma de suas mãos, se certificou das combinações de pedras abertas na mesa e se deliciou com um olhar despudorado para os companheiros de peleja ao estalar uma das peças na mesa e soltar num acentuado pernambuquês: “Nem em Caruaru um cabra arretado abre esse três”. Enfrente a um enferrujado bebedouro que a conta gotas trazia para seu bico quem cruzasse a praça na abafada manhã, uma jovem de perna roliça e pele jambosa deixava escapar em sutis expressões faciais que se comunicava em pensamento com o desabrochar da paixão. Sentada no banco que trazia em vermelho no encosto os dizeres “Recife, a Veneza Brasileira”, acariciava ao sabor de um mundo sem tic tac, os longos cabelos escuros jogados ao peito e, pacientemente, fio a fio, quebrava as pontas.